A crise política crescente no governo de Jair Bolsonaro atingiu de vez a área mais sensível da gestão do combate à pandemia da Covid-19 no país, o Ministério da Saúde.
Antes de completar um mês à frente da pasta, o ministro da Saúde, Nelson Teich, pediu demissão do cargo nesta sexta-feira (15).
A saída de Teich coincide com a marca de 204 mil contaminados pelo vírus e 14 mil mortos. Na quinta-feira (14), segundo o Ministério da Saúde, foram registrados 844 óbitos em 24 horas, média que tem se elevado a cada dia.
O presidente nacional do PSB, Carlos Siqueira, criticou mais esta mudança numa área fundamental para o país, o que classificou como uma irresponsabilidade “inacreditável” do governo.
“É inacreditável que o governo seja tão irresponsável ao ponto de exonerar dois ministros da saúde em plena pandemia, apenas pelo fato de eles se comportarem de acordo com as orientações científicas que a crise sanitária exige”, afirmou.
Nelson Teich tomou posse em 17 de abril. Essa é a segunda saída de um ministro da Saúde em meio à pandemia do coronavírus. Teich havia substituído Luiz Henrique Mandetta.
Assim como Mandetta, Teich também apresentou discordâncias com o presidente Jair Bolsonaro sobre as medidas para combate ao coronavírus. Os desentendimentos entre os dois começaram já nas primeiras duas semanas e se agravaram nos últimos dias.
Os pontos de discordância entre o agora ex-ministro e o presidente são quanto ao uso da cloroquina no tratamento da doença, a ampliação das atividades essenciais pelo decreto de Bolsonaro, como salões de beleza, barbearia e academias de ginástica, sem ter ouvido Teich, e os detalhes do plano para saída do isolamento.
Bolsonaro insiste, por exemplo, na alteração do protocolo do SUS para permitir o uso da cloroquina desde o início do tratamento, do que Teich discorda. Não há ainda comprovação científica da eficácia do remédio no tratamento da doença como defende o presidente.
Negacionismo
Em relação à pandemia, Bolsonaro se pauta pelo negacionismo, contrariando todas as orientações técnicas e científicas adotadas pelos governantes dos principais países atingidos pela pandemia e defendidas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e o próprio Ministério da Saúde.
Para impor suas ideias sobre as políticas de governo, o presidente tem agido com intransigência, a ponto de desautorizar seus ministros ou mesmo demiti-los do cargo. Evidencia-se, assim, uma lógica autoritária e sua busca por preservar interesses políticos mesmo que isso custe, como no caso do combate à pandemia, a morte de milhares de brasileiros. Bolsonaro insiste no fim do isolamento social e na retomada das atividades econômicas.
O governo chega, portanto, aos dois meses da pandemia com uma grave crise política no Ministério da Saúde, sem seu titular, sem um plano nacional de combate ao coronavírus, além de um programa de ajuda aos mais necessitados que sequer chegou a boa parte deles por má gestão e burocracia.
Na falta do benefício, milhões de pessoas arriscam a própria vida, se aglomerando em filas nas agências da Caixa Econômica Federal, em busca de R$ 600,00.
Mortes e sofrimento minimizados
Desde o começo da pandemia, Jair Bolsonaro minimiza a morte de milhares de pessoas e o sofrimento de suas famílias.
Nos protestos de 15 de março, por exemplo, Bolsonaro desrespeitou recomendações do Ministério da Saúde e cumprimentou apoiadores.
“Se eu resolvi apertar a mão do povo, desculpe aqui, eu não convoquei o povo para ir às ruas, isso é um direito meu. Afinal de contas, eu vim do povo. Eu venho do povo brasileiro”, disse à época.
Nas semanas seguintes ele viria a participar de outras manifestações públicas de apoiadores, estimulando aglomerações desaconselhadas pelos especialistas.
“Gripezinha”
Em um pronunciamento em cadeia de rádio e TV, Bolsonaro chamou o coronavírus de “gripezinha ou resfriadinho”, o que ganhou repercussão negativa internacional.
Por várias vezes, o presidente repetiu que havia “muita histeria” e “superdimensionamento” sobre o impacto da pandemia, enquanto o número de mortos e contaminados só crescia.
Apesar de o Brasil ter decretado emergência sanitária no dia 4 de fevereiro – antes da confirmação do primeiro caso no país, no dia 26, o presidente combate desde então o isolamento social, enquanto o ministro Mandetta, enquanto esteve no cargo, defendia a estratégia para evitar a propagação do coronavírus.
“Coveiro”
No dia 19 de abril, o presidente chegou a dizer que não é “coveiro”, em mais uma afronta aos milhares de brasileiros mortos e seus familiares.
Ao responder à pergunta de um jornalista sobre o número de mortes por coronavírus, que àquela altura alcançava as 2.575 mortes e 40.581 casos confirmados de pessoas contaminadas, Bolsonaro disse:
“Ô, cara, quem fala de… Eu não sou coveiro, tá certo?”
O repórter, então, tentou fazer novamente a pergunta.
“Não sou coveiro, tá?”, repetiu o presidente da República.
No mesmo dia, ao sair do Palácio da Alvorada, Bolsonaro disse que 70% da população será contaminada e “não adiante querer correr disso”.
“Aproximadamente 70% da população vai ser infectada. Não adianta querer correr disso. É uma verdade. Estão com medo da verdade?”, indagou o mandatário.
“Economia não pode parar”
Além do uso da cloroquina em pacientes com coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro carrega outra obsessão, a de proteger a economia do país custe o que custar.
No dia 20 de março, em uma conferência com empresários, Bolsonaro disse que o Brasil não poderia parar. “A economia não pode parar. Temos que produzir muita coisa. Nossa produção de alimentos também não pode parar”, afirmou, como se fosse possível manter a normalidade das atividades econômicas em meio a uma maiores pandemias da história.
À medida que a pandemia se alastra, ele defende com mais vigor a reabertura do comércio.
“Trinta e oito milhões de autônomos já foram atingidos. Se as empresas não produzirem, não pagarão salários. Se a economia colapsar, os servidores também não receberão”, escreveu no Twitter. “Devemos abrir o comércio e tudo fazer para preservar a saúde dos idosos e portadores de comorbidades”, afirmou Bolsonaro, no final de março.
A postagem acompanhava um vídeo sobre medidas do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que prometia reabrir o país. Hoje, os Estados Unidos são o país mais afetado do mundo pelo coronavírus, tanto em número de falecimentos quanto de casos de contaminação.
Até a quinta-feira, o país registrou 85.813 mortes, 1.754 em apenas 24 horas, segundo dados da Universidade Johns Hopkins. O contágio chegou a 1.416.528 de pessoas.
“É guerra”
Como líder de um projeto antidemocrático, Jair Bolsonaro mantém um discurso belicoso, sempre alimentando a ideia de uma “guerra” contra “inimigos” imaginários.
Em sua “batalha” contra o isolamento social, por exemplo, Jair Bolsonaro investe toda semana contra aqueles que defendem a medida para evitar o avanço da pandemia e o consequente colapso do sistema de saúde.
Os governadores têm sido alvos das críticas frequentes do presidente, que os “acusa” de terem adotado medidas muito rigorosas de quarentena, e que com isso levariam o país a uma paralisia econômica, na opinião do presidente.
Nesta quinta-feira (14), em outra conferência virtual com empresários, Bolsonaro declarou “guerra” e conclamou os empresários da indústria a “jogar pesado” com o governador de São Paulo, João Dória, a fim de evitar um eventual “lockdown”.
“Um homem está decidindo o futuro de São Paulo. Está decidindo o futuro da economia do Brasil. Os senhores [empresários], com todo o respeito, têm que chamar o governador e jogar pesado, jogar pesado, porque a questão é séria. É guerra”, disse o presidente.
No encontro, Bolsonaro disse que, se dependesse dele, estaria “tudo aberto”, a exemplo da Suécia, citou.
“Para o governo federal, se depender de nós, estava tudo aberto com isolamento vertical e ponto final. Os governadores assumiram cada um a sua responsabilidade, houve uma concorrência entre muitos para ver o que fechava mais”, disse.
Irracionalismo
Movido pelo irracionalismo, “da ação pela ação”, Bolsonaro tem mantido sua “guerra” imaginária também contra a oposição, os cientistas, os pesquisadores, jornalistas, veículos de comunicação e também outros poderes da República.
Basta discordar do presidente para se tornar um “inimigo” em potencial e um alvo dos ataques da tropa bolsonarista nas redes sociais.
Nesta semana, Bolsonaro disse em entrevista na saída da residência oficial do Palácio do Alvorada, que seus ministros deveriam estar “afinados com ele”. O presidente fazia referência a uma postagem de Teich nas redes sociais, em que o então ministro alertava para riscos da cloroquina no tratamento de covid-19.
“Olha só, todos os ministros, eu já sei qual é a pergunta, têm que estar afinados comigo. Todos os ministros são indicações políticas minhas e quando eu converso com os ministros eu quero eficácia na ponta. Nesse caso, não é gostar ou não do ministro Teich, é o que está acontecendo”, afirmou Bolsonaro.
Demonstrando responsabilidade técnica, Teich havia escrito:
“Um alerta importante: a cloroquina é um medicamento com efeitos colaterais. Então, qualquer prescrição deve ser feita com base em avaliação médica. O paciente deve entender os riscos e assinar o ‘Termo de Consentimento’ antes de iniciar o uso da cloroquina.”
A correta preocupação de Teich, no entanto, terminou por abreviar sua passagem pela pasta da Saúde, onde permaneceu apenas 28 dias.