Autores: Rafael Carneiro e Matheus Cardoso, advogados e responsáveis pela Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) que questiona regras sobre doação de sangue por homens homossexuais
Muito sangue tem sido derramado em nosso país em nome de preconceitos que não se sustentam”. Essa frase do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, resume a importância do debate que está sendo travado sobre as restrições impostas pelo Ministério da Saúde e pela Anvisa à doação de sangue por homens homossexuais. Relator do caso no Supremo, Fachin já votou pela declaração de inconstitucionalidade dessa restrição, no que foi acompanhado pelos ministros Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Rosa Weber. O ministro Alexandre de Moraes concordou com o tratamento diferenciado para a doação de homens homossexuais, embora tenha feito ressalvas. O julgamento foi suspenso por um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes.
Proposta pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro) em 2016, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.543, que está sendo julgada, questiona as normas que declaram ser inapto para a doação sanguínea o homem que tenha se relacionado sexualmente com outro homem nos 12 meses anteriores ao dia da doação. Ou seja, basta uma única relação sexual em um ano para inviabilizar a doação. Assim, tem-se que qualquer homem homoafetivo que possua um nível mínimo de atividade sexual torna-se permanentemente inapto a doar sangue.
Quando se dirige a um posto médico ou hospital para doar sangue, o candidato homem é questionado se ele contraiu relação sexual com outro homem nos 12 meses anteriores àquela data. Caso a resposta seja afirmativa, o candidato é automaticamente excluído do procedimento e sequer tem o sangue coletado para análise. Essa situação representa tratamento discriminatório por parte do Estado em face dos homens que se relacionam sexualmente com outros homens, já que todo o material sanguíneo, de toda e qualquer pessoa, antes de ser doado a outrem, deve ser submetido a exames aptos a detectarem a contaminação por doenças transmissíveis. Impressiona ainda o fato de que a mesma portaria que traz essa regra de exclusão afirma que a orientação sexual não deve configurar critério para a seleção de doadores de sangue.
Argumenta-se ser justificável tal discriminação pelo fato de que é proporcionalmente maior a incidência de DSTs (Doenças Sexualmente Transmissíveis) nos homens homossexuais em relação aos heterossexuais. No entanto, segundo o último Boletim Epidemiológico da Aids, elaborado pelo Ministério da Saúde, a incidência de contaminação pelo vírus HIV também é maior na população que não possui curso superior, em relação ao grupo que possui graduação. O índice de contaminação pela Aids também é maior na população parda em relação à população branca. A lógica adotada pelo Ministério da Saúde, portanto, mostra o desacerto de se justificar proibições unicamente na leitura crua de dados frios, sem o mínimo processamento racional dos números.
A questão central é que os comportamentos de risco para a contaminação por DST não decorrem da orientação sexual dos parceiros envolvidos nas relações sexuais. O risco de contaminação é gerado pela prática sexual sem a utilização de preservativos ou com parceiros desconhecidos, independentemente de o ato ter ocorrido entre homens, entre mulheres, ou entre homens e mulheres. O doutor Drauzio Varella costuma argumentar que um homossexual que possua um único parceiro, que não está infectado, tem chance zero de contrair o vírus da AIDS, enquanto uma mulher casada com homem infectado tem chance maior do que zero de ser infectada. Drauzio Varella então provoca: quem seria o grupo de risco?
A proibição de doação de sangue por homens homossexuais surgiu na década de 1980, quando havia um desconhecimento completo sobre as causas da Aids. Como consequência, ao se perceber que a incidência do vírus HIV era maior em determinados grupos, vários países proibiram, como medida de segurança, a doação de sangue por pessoas que se incluíam nesses grupos. Assim, a segregação se deu em razão da falta de conhecimento sobre as causas e as formas de transmissão do vírus HIV.
Hoje, por outro lado, é sabido que a causa da doença não é a relação sexual entre homens, mas sim a relação sexual desprotegida, de quem quer que seja, razão pela qual proibir a doação de homens homoafetivos deixou de ser uma medida de segurança e se tornou uma medida de preconceito injustificado. Se analisado o contexto internacional, grande parte dos países acabaram com essa proibição. Portugal, Espanha, Chile e Argentina são exemplos de nações que extirparam de seus ordenamentos a proibição de doar sangue imposta aos homens que se relacionam sexualmente com outros homens.
É preciso destacar que a permissão de doação por homens homossexuais não colocará em risco a segurança ou a qualidade do sangue doado. Atualmente já existem diversas regras que declaram inaptos qualquer um que possua comportamento sexual arriscado. O que se questiona, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade que o Supremo julga, é apenas a premissa de que a orientação sexual representa, por si só, um fator de risco para a transmissão de doenças.
Na verdade, além de não representar qualquer tipo de perigo para a saúde pública brasileira, a extinção dessa proibição certamente contribuirá para amenizar a crise de baixo estoque vivenciada nos bancos de sangue brasileiros. Estima-se que, no Brasil, sejam desperdiçados milhões de litros de sangue por ano em razão dessa proibição imposta aos homens homoafetivos. A contradição impressiona: embora apenas 1,8% da população brasileira seja doadora de sangue, abaixo da meta de 3% indicada pela Organização Mundial da Saúde, o país desperdiça anualmente milhões de litros de sangue por preconceito injustificado.
Assim, a atual regra que impede a doação de sangue de homens homossexuais, além de violar os direitos constitucionais à igualdade e à dignidade humana, agrava a crise de carência de estoque vivenciada pelos bancos de sangue do país, mostrando-se prejudicial, também, à saúde pública brasileira.
Rafael Araripe Carneiro é advogado e sócio fundador do escritório Carneiros Advogados. Professor de direito constitucional e de direito administrativo do Instituto Brasiliense de Direito Público, onde coordena clínica de direito constitucional. É mestre e doutorando em direito pela Universidade Humboldt de Berlim. Matheus Pimenta de Freitas
Matheus Pimenta de Freitas Cardoso é advogado e sócio do escritório Carneiros Advogados. Graduado pela Universidade de Brasília em 2017, é professor assistente de direito constitucional do Instituto Brasiliense de Direito Público e coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Direito Eleitoral da Universidade de Brasília.
* Artigo originalmente publicado em 6/12/2017 no site Nexo Jornal