No momento em que o Brasil atinge a alarmante marca de 30 mil mortes causadas pelo novo coronavírus e mais de 530 mil casos confirmados, governos de alguns dos Estados mais afetados pela doença começam a liberar a abertura gradual de atividades não-essenciais.
O afrouxamento do isolamento social adotado antes mesmo de o país alcançar o pico da doença é preocupante por vários fatores, o principal é o aumento significativo da interiorização do vírus para regiões sem a mesma infraestrutura de atendimento das capitais e retaguarda hospitalar.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a América Latina é o novo epicentro da pandemia e o Brasil caminha para se tornar o novo epicentro no mundo, podendo ultrapassar os EUA, antes mesmo de chegar à fase de pico de contágio.
O Brasil já é o segundo país com maior número de casos no mundo, depois dos EUA, e o quarto em número de mortes, atrás de EUA, Reino Unido e Itália. Alguns dos países que começaram a flexibilizar a quarentena quando a curva de contaminados estava descendente, tiveram que reavaliar as medidas e voltar atrás em algumas das liberações, mesmo tendo preparado a população para o período.
Mesmo com a nota técnica divulgada nesta segunda-feira (1º) pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), pedindo que o estado do Rio de Janeiro adote de forma rigorosa medidas de distanciamento social até que a situação da pandemia esteja sob controle no estado e nos municípios, o prefeito Marcelo Crivella não recuou na decisão de abertura gradual das atividades econômicas nesta terça-feira (2).
O Estado do Rio registrava até esta segunda-feira 54.530 casos confirmados e 5.462 mortes por coronavírus. Há ainda 1.288 óbitos em investigação.
No Estado de São Paulo a situação é ainda mais preocupante. O governo estadual lançou na última segunda-feira um plano de medidas para a flexibilização da quarentena. Pelo documento, caberá às prefeituras definir como se dará a reabertura do comércio e volta ao trabalho. A capital paulista foi colocada em fase de controle (laranja), e nesse grupo é permitida a liberação de shoppings, comércio, escritórios, atividades imobiliárias e concessionárias.
É grave que a unidade federativa mais populosa do Brasil, onde mais de 7,5 mil pessoas morreram de Covid-19 e mais de 110 mil pessoas foram infectadas pela doença, já esteja relaxando a quarentena quando as curvas de evolução da doença ainda são crescentes.
O afrouxamento das medidas em São Paulo, colocado em prática devido a pressão de prefeitos paulistas e do setor empresarial, contradiz a postura que Doria assumiu nos últimos meses, a de crítico ao governo Bolsonaro por “desprezar a vida”.
De fato, o desprezo à vida é uma boa expressão para resumir a ausência da atuação do governo federal na crise do novo coronavírus. Antes mesmo do primeiro caso de Covid-19 ser confirmado no Brasil, em 26 de fevereiro deste ano, até o início de junho, Bolsonaro minimiza a gravidade do vírus, critica o isolamento e recomenda o uso da cloroquina, contrariando orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Nos últimos meses, ficou evidente o despreparo do presidente para liderar o combate ao vírus e a seus impactos na sociedade. Dois ministros da Saúde caíram depois de se contraporem a Bolsonaro, que a cada semana provoca uma nova polêmica política aumentando a instabilidade e tirando o foco do enfrentamento da pandemia.
Pandemia se interioriza
Enquanto isso, as curvas de contágio do coronavírus se interiorizam país afora. Com a ausência de um plano nacional, os governos estaduais tomaram as rédeas da crise sanitária. Alguns Estados elaboraram relevantes planos de combate e estão conseguindo controlar a disseminação, porém a ausência de um controle unificado para impedir o tráfego entre divisas estaduais e municipais faz com que o esforço dos governadores não tenha os resultados esperados.
O neurocientista Miguel Nicolelis explica que a doença chegou ao Brasil como se fosse uma guerra, um exército inimigo que invade pela costa em pontos estratégicos. “Agora a interiorização está progredindo rapidamente pela malha rodoviária. Temos estudos que mostram isso. Tem um número significativo de regiões no Nordeste que está ainda com um número pequeno de casos, nesses locais ainda dá para evitar o aumento da doença”, afirma.
“Tem que pensar no país como um todo”, defendeu o professor da Faculdade de Medicina da Universidade Duke (EUA) e coordenador do Consórcio Nordeste, comitê criado por pesquisadores e cientistas renomados para desenvolver estratégias de combate ao coronavírus.
Oito Estados já registram mais casos no interior do que nas próprias capitais e regiões metropolitanas: Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Faz-se necessário que os Estados analisem os números de casos de Covid-19 das cidades interioranas antes de lançaram planos de reabertura baseado nos números das capitais.
Segundo levantamento feito pelo Estadão, no fim de março, apenas 12,4% dos casos confirmados de Covid-19 no país havia sido registrado em municípios do interior. No fim de abril, esse porcentual passou para 18,6% e, na data mais recente, saltou para 34,5%, o que representa mais de 150 mil infecções confirmadas fora das capitais.
O número de óbitos registrados no interior segue trajetória semelhante: passou de 9,2% no fim de março para 17,8% no fim de abril e agora representa 22% do total do Brasil. Em números absolutos, já eram quase 6 mil vítimas nessas regiões no fim de maio.
Nicolelis afirma que se houvesse uma organização estratégica, o governo federal poderia colocar “médicos, agentes de saúde, enfermeiros, indo de casa em casa nessas localidades, para encontrar os casos, isolar as pessoas, impedir a sua multiplicação. Assim nós teríamos uma chance”.
A negligência com o Sistema Único de Saúde (SUS) nos últimos anos está tendo resultados no momento em que ele é mais necessário para o país. “Só no ano passado, o Sistema Único de Saúde perdeu mais R$ 20 bilhões – que é quase 20% do orçamento do SUS. E o SUS, nesse instante, é a única coisa que está segurando o Brasil: a capilaridade do SUS, a existência do SUS, os médicos e os funcionários do SUS”, analisa Nicolelis.
Ele defende que o lockdown seja feito onde o número de casos está crescendo e a taxa de ocupação dos hospitais, esteja acima de 80%. Para Nicolelis, o Estado brasileiro tem que seguir o exemplo dos EUA e outros países, criando “um pacote efetivo de ajuda econômica ao cidadão que permita que as pessoas sobrevivam a um lockdown”.
“Agora, a dúvida é se nós vamos passar os Estados Unidos nessa primeira onda, e eu acho que nós vamos. Eu não tenho 100% de certeza, mas a sensação que dá é que, até setembro, outubro, a gente pode estar à frente dos Estados Unidos em número de óbitos – porque a subnotificação brasileira é gigantesca, provavelmente maior do que a americana, que também é grande”.
Auxílio emergencial
No cenário de retomada de atividades nas cidades e de interioriação da pandemia, um outro agravante é a dificuldade de milhões de pessoas receberem o auxílio emergencial, fundamental para garantir a permanência em casa. Até a metade do mês de maio, momento em que a maior parte dos estados brasileiros havia determinado medidas rigorosas de isolamento social, indo contra o posicionamento do governo federal, nada menos do que 36,8 milhões de brasileiros haviam recebido resposta negativa ao pedido de auxílio emergencial que teve a primeira parcela liberada em abril.
Bases de dados da Receita Federal desatualizadas e decisões políticas conflitantes colocam a camada mais carente da população numa situação limite de sobrevivência.