Em um dia como este, a 4 de setembro de 1970, a Unidade Popular vencia as eleições no Chile com o médico Salvador Allende, o primeiro socialista escolhido pelo voto na América Latina.
Após 50 anos, o Chile vive um período de intensa mobilização popular iniciada com os protestos de outubro de 2019.
Como candidato da UP, coalizão de esquerda liderada pelos Partidos Socialista e Comunista, Allende propôs a construção de um Estado popular e uma economia planificada, com presença ativa do Estado.
No entanto, três anos depois de sua posse, sofre um golpe de Estado, a 11 de setembro de 1973, liderado pelo general Augusto Pinochet, numa articulação com as elites do país e o apoio do governo dos Estados Unidos.
Inicia-se a mais sangrenta ditadura do continente que, após 17 anos, deixa mais de 3.200 pessoas foram mortas e 40 mil torturadas, entre elas, a ex-presidente pelo Partido Socialista e atual comissária dos Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet.
Os números são contestados por organizações de familiares de mortos e desaparecidos que contabilizam mais de 100 mil presos submetidos à tortura.
Segundo recente relatório anual do Centro de Direitos Humanos da Universidade Diego Portales, desde julho de 2010, a Suprema Corte concluiu 214 casos de violações de direitos humanos durante a ditadura de Pinochet, com 532 agentes envolvidos. As sentenças efetivas de prisão somaram 462 no mesmo período.
Na economia, os militares transformaram o Chile no laboratório do liberalismo na América Latina. Enquanto milhares de chilenos eram mortos e torturados, jovens economistas da Universidade de Chicago, conhecidos como “Chicago boys”, testaram suas fórmulas de crescimento econômico às custas das condições de vida do povo.
Reduziram a presença estatal na medida dos interesses do capital interno e internacional. Um dos “Chicago Boys” da época é o atual ministro da Economia brasileiro Paulo Guedes, que no governo de Jair Bolsonaro, trabalha para aplicar a mesma fórmula de desmonte do Estado, privatizações e eliminação de direitos sociais, 30 anos depois.
A ditadura chilena tentou eliminar a doutrina socialista e a imagem de Allende da memória do país, mas a história mostra que não conseguiu, afirma o presidente nacional do PSB, Carlos Siqueira.
“O exemplo de Salvador Allende, seus ideais, sua coragem e sua lealdade às causas populares, à democracia, ao socialismo, estão vivos em cada militante que hoje vai às ruas protestar por justiça social, dignidade e respeito aos direitos humanos, afirma Siqueira.
A maioria da população chilena sofre os efeitos do modelo liberal que predominou nas últimas décadas. Apesar da melhoria em indicadores sociais ao longo dos governos civis, são evidentes os problemas causados pela permanência de serviços essenciais nas mãos de empresas privadas. Desde o acesso a água potável e eletricidade até saúde, educação e a previdência social.
Algumas das principais propostas do governo da Unidade Popular seguem atuais, meio século depois, como a eliminação das profundas desigualdades sociais, a ampliação da participação popular, a criação de sistemas de educação e saúde públicos e de qualidade, e a nacionalização das riquezas naturais.
“Isso demonstra o caráter avançado da agenda representada por Allende e deve seguir inspirando a luta de socialistas e democratas em todo mundo, porque o liberalismo e o conservadorismo estão sempre à espreita, esperando o momento de chegar ao poder e impor seu projeto excludente e antipopular”, afirma Siqueira.
Para o presidente do Partido Socialista do Chile, senador Álvaro Elizalde, o Chile que elegeu Allende há 50 anos e o atual, que no ao passado saiu às ruas a protestar contra a desigualdade no país, representam “momentos históricos distintos”, mas mantêm “elementos comuns”.
“Allende afirmou, em suas últimas palavras, que se abririam as grandes alamedas para o povo do Chile. As mobilizações sociais do ano passado dão conta precisamente de um empoderamento da cidadania que exige mudanças estruturais contra as desigualdades e os abusos”, assegurou Elizalde.
A senadora socialista Isabel Allende Bussi, uma das três filhas do ex-presidente, algumas das mudanças que hoje pede a cidadania seriam uma realidade se o governo de seu pai tivesse prosseguido.
“Penso que se não houvesse ocorrido o golpe de Estado de 1973, provavelmente teríamos um país que haveria avançado em maior igualdade e em políticas públicas que promoveriam não só uma expansão no acesso aos distintos serviços, mas também em uma melhor qualidade de vida para todos e todas”, refletiu a senadora.
“Se ele (o golpe militar) não houvesse acontecido, possivelmente, haveríamos avançado substantivamente nas políticas sociais de saúde, educação, moradia e emprego”, afirmou.
A legislação chilena à época estabelecia seis anos de mandato para Allende, mas o socialista nem sequer completou a metade desse tempo. O projeto popular, democrático e socialista, eleito nas urnas, seria interrompido a tiros contra o Palácio La Moneda, na manhã de 11 de setembro de 1973.