O presidente Jair Bolsonaro sempre desdenhou dos impactos da pandemia de Covid-19. Mas, diante do recorde diário de mais de mil mortes pela doença, o que consolida o país como maior risco sanitário na América Latina e um dos principais no mundo, Bolsonaro optou pela estratégia de manipular as estatísticas oficiais do Ministério da Saúde.
Mais importante do que tratar com transparência a pandemia, que nesta seta-feira atingiu o patamar impressionante de 1 milhão de contaminados identificados, para Bolsonaro, é buscar o melhor estratagema para preservar o que resta de seu governo autoritário, insensível, irracional, intolerante.
A omissão e a distorção de informações expõe Bolsonaro e o ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, a responderem não só por crime de responsabilidade, sujeito a impeachment, como também a crime comum. O Código Penal também tipifica a prática no Artigo 313 A: inserir ou facilitar o funcionário autorizado a inserção de dados falsos e alterar ou excluir indevidamente dados corretos no sistema informatizado ou banco de dados da administração pública, com o fim de obter vantagem indevida para si ou para outrem, ou para causar dano, dá pena de reclusão de 2 a 12 anos, além de multa.
O artigo 319 do mesmo Código Penal também considera crime retardar ou deixar de praticar indevidamente ato de ofício ou praticá-lo contra a disposição expressa de lei para satisfazer a interesse ou sentimento pessoal. A pena é de detenção de 3 meses a 1 ano e multa.
Típicos de regimes autoritários, a falta de transparência e a manipulação de estatísticas aproximam o país da Coreia do Norte e da Venezuela, tão criticada por Bolsonaro. Dois médicos de formação foram afastados do comando do Ministério da Saúde até que Bolsonaro encontrasse um titular subserviente o suficiente, um militar, para acatar, sem critérios técnicos e científicos, todas as suas ordens.
Ao esconder os dados da covid-19 da população, Pazuello não foge ao que a sua categoria protagonizou em um triste período da história do país. Durante o regime de exceção, não só corpos de perseguidos políticos foram escondidos pelo regime civil-militar, como também os números de uma pandemia de meningite. Milhares de pessoas morreram e centenas de crianças pobres foram enterradas em valas comuns sem identificação.
A forte reação negativa diante da nova forma de apresentar os dados da covid-19 gerou uma mobilização em peso de instituições, da sociedade civil, do Congresso Nacional e do Judiciário.
Para o presidente nacional do PSB, Carlos Siqueira, a democracia é o governo dos atos públicos, conhecidos, sob controle da opinião pública e, por isso, a falta de transparência no caso dos dados da pandemia é tão grave. Qualquer tipo de decisão que busque dificultar o acesso ou a compreensão sobre informações, principalmente numa situação de pandemia, deve ser fortemente rechaçada, avalia.
“A total clareza sobre informações públicas é indispensável em um regime que se propõe democrático. Por isso mesmo, como já disse (Norberto) Bobbio, a opacidade do poder é a negação da democracia”, afirma Siqueira, citando palavras do pensador italiano.
“A história nos mostra que ocultar e manipular dados foi sempre a estratégia usada por regimes autoritários que, ao final, se voltaram contra os cidadãos”, afirma.
A manobra do governo em tema de saúde pública provocou reação também do governador de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB). Em suas redes sociais, disse: “Não se pode enfrentar uma pandemia sem ciência, transparência e ação. Negar a realidade é grave. Sonegar dados é ultrapassar os limites. É tentar – com cálculo perverso – impor fissuras ao nosso tecido democrático”.
Para Câmara, o governo federal tornou-se, sob todos os aspectos, “exemplo do que é errado e inaceitável”. “Manipulação, omissão e desrespeito são traços marcantes em gestões autoritárias. Mas isso não vai destruir o esforço da nação inteira. Seguiremos levantando, sistematizando e divulgando os dados. Só assim alcançamos resultados. Apesar da irresponsabilidade federal, a luta pela vida vai avançar”, afirmou.
O líder do PSB na Câmara, Alessandro Molon (RJ), apresentou requerimento de convocação do ministro da Controladoria-Geral da União, Wagner Rosário, para prestar esclarecimentos sobre o encobrimento dos dados. “O governo acha que, em escondendo os dados que revelam os absurdos da gestão federal, conseguirá se eximir de suas responsabilidades. A transparência de dados é fundamental para permitir respostas rápidas e eficientes em uma pandemia. Mas Bolsonaro montou um governo fechado em si mesmo, que não trabalha pelo povo. O ministro terá que se explicar e dizer ao Parlamento como mudará isso”, criticou.
A Câmara aprovou a tramitação urgente de um projeto de lei de três deputados, dois deles socialistas – Felipe Rigoni (PSB-ES) e Camilo Capiberibe (PSB-AP) que obriga o governo a ser transparente na divulgação dos dados. Pela proposta, o governo terá de divulgar informações com detalhes sobre casos, capacidade do sistema de saúde e uso de recursos públicos em um portal único na internet.
O texto faz um amplo detalhamento do que o governo terá de divulgar sobre casos suspeitos e confirmados como a faixa etária, sexo, raça e doenças preexistentes dos pacientes. Além disso, o Ministério da Saúde deverá apresentar o número de testes à espera de resultado, especificando o tipo de teste realizado. A lista inclui ainda a quantidade de mortes e taxa de mortalidade, além de casos de curas. O número de médicos e profissionais da saúde contaminados e que foram a óbito também deverá ser público.
Outras reações vieram do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) que disponibilizou, em seu site, um painel com dados atualizados sobre o número de casos da Covid-19 no país. A imprensa formou um consórcio para coletar dados fidedignos da Covid-19. O Tribunal de Contas da União (TCU) também anunciou que faria parceria com tribunais de contas estaduais (TCEs) para garantir total transparência e publicidade dos dados sobre a doença.
Marca do PSB
A transparência é uma das principais bandeiras defendidas pelo PSB. O partido é autor da Lei da Transparência, elaborada pelo ex-senador João Capiberibe (PSB-AP) e um dos grandes avanços no controle social de dados referentes às contas dos governo.
“Censurar e manipular informação é uma característica dos déspotas tipo Bolsonaro. Trata-se de um atentado criminoso contra a transparência e o direito à informação, uma das maiores conquistas do Brasil democrático”, opina o vice-presidente nacional de Modernização Partidária e ex-senador João Capiberibe, autor da Lei da Transparência.
A lei trouxe um importante avanço no conceito de transparência pública e de controle social, obrigando União, estados e municípios a divulgar seus gastos na internet em tempo real.
Em abril, o Governo do Estado de Pernambuco foi considerado o mais transparente no combate ao novo coronavírus, segundo estudo da ONG Open Knowledge Brasil. Em primeiro lugar no ranking, o Estado recebeu 81 pontos, de um total de 100, adotados como critérios de avaliação. Foi o único Estado brasileiro a apresentar um resultado considerado “de alto nível de transparência”, graças aos esforços do governo do PSB.
Outras gestões socialistas pelo país foram reconhecidas por sua transparência na divulgação de dados sobre a pandemia. A Prefeitura de Rio Branco foi a terceira gestão pública no ranking nacional de Transparência no combate à Covid-19. Com status de avaliação “Bom”, a gestão da prefeita Socorro Neri (PSB) se destacou pela implementação de ações que buscaram manter a população a par das decisões feitas em seu governo.
MANIPULAÇÃO DE DADOS
Atendendo a uma ação de partidos da oposição, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que o Ministério da Saúde retomasse a divulgação dos dados acumulados do coronavírus.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) pediu “transparência” ao governo de Bolsonaro e cobrou uma rápida solução para a “confusão” no país.
“É muito importante que mensagens sobre transparência sejam coerentes, para que possamos confiar nos nossos parceiros. É mais importante ainda para os cidadãos, que precisam entender como lidar com o vírus”, disse Michael Ryan, diretor do programa de emergências da OMS.
Com a determinação de Moraes, o Ministério da Saúde voltou a divulgar os consolidados de mortes nas últimas 24h, incluindo as mortes confirmadas no período, independentemente se elas ocorreram nesse intervalo de tempo.
A somatória dos dados segue o padrão internacional. O problema de dividir os números é que a pasta deixaria de fora os pacientes que tiveram a morte confirmada por covid-19 fora do período contabilizado.
MANIPULAÇÃO
Para alcançar seu intento de esconder dados, o presidente Bolsonaro determinou em um primeiro momento que a divulgação de casos e mortes fosse atrasada para o final da noite com o objetivo de escamotear a notícia em horário nobre. “Acabou matéria do Jornal Nacional”, disse ao ser questionado sobre o atraso. No dia seguinte, o painel com informações saiu do ar. Ao retornar, não trazia totais de casos e óbitos nem acessos para bases de dados detalhados.
Depois disso, o Ministério da Saúde recuou e anunciou que iria manter disponíveis os números acumulados de mortes e de casos confirmados da Covid-19. No entanto, confirmou que iria promover uma mudança na divulgação: informaria apenas os dados efetivamente registrados nas últimas 24 horas. As mortes que ocorreram antes, mas que fossem confirmadas nesse período, ficariam de fora. Essa foi a “solução” encontrada por Bolsonaro para
que o número de óbitos ficasse abaixo de mil por dia, como ordenou à sua equipe.
Em mais uma reação, grupos de comunicação criaram um consórcio para buscar dados das secretarias estaduais de saúde, processar e informar diariamente o balanço das últimas 24h. Os números divulgados pelo consórcio têm sido maiores que os anunciados pelo governo, que mantém a publicação dos números sempre no final da noite.
No domingo (7), por exemplo, menos de duas horas depois de divulgar o boletim oficial com 1.382 mortes de Covid-19, o Ministério da Saúde atualizou a plataforma digital e alterou o número para 525, “sumindo” com 857 óbitos.
Está cada vez mais claro, para o governo, a dramática situação do Brasil e de sua população não passa de uma questão de números em uma planilha.
Exatamente como pensa, sem dissimular, Jair Bolsonaro: “Um dia, todos irão morrer (…) E daí?”